Arqueologia da Casa do Capitão Mor de
Sobral Xerez Uchoa

Archaeology of the house of Captain Mor Sobral Xerez Uchoa

A cidade de Sobral, no estado do Ceará, apresenta características muito singulares que a diferencia da maioria das cidades brasileiras. Seu povo tem, e demonstra com muito orgulho, um grande amor a sua terra e à sua sociedade.

Busca suas origens no passado, e ao mesmo tempo luta por um porvir voltado para a modernidade. Um passado de sucesso em suas lutas, alcança um presente dinâmico voltado para o futuro.

O primeiro trabalho de pesquisa arqueológica realizada em Sobral por nossa equipe voltou-se para a procura dos alicerces da igreja em torno da qual desenvolveu-se a cidade de Sobral, a Igreja de Nossa Senhora da Conceição da Caiçara.

Durante a realização desta pesquisa tivemos a oportunidade de observar o que o seu resultado importava para a sociedade local. Por onde a nossa equipe se deslocava sempre alguém solicitava informações sobre o andamento dos trabalhos; o que de novo havia sido encontrado? Houve uma grande interação entre os moradores locais e a pesquisa arqueológica. Viam nos alicerces que começaram a aparecer as suas raízes mais profundas.

Em outubro de 2001 a equipe do Laboratório de Arqueologia da Universidade Federal de Pernambuco retorna a Sobral. A Prefeitura Municipal de Sobral, na gestão do Prefeito Cid Gomes, decidiu restaurar a casa que pertenceu ao Capitão Mor da Vila Distinta de Sobral, José de Xerez da Furna Uchoa, e transforma-la em um centro de referência da cultura sobralense.

A Secretaria de Desenvolvimento da Cultura e do Turismo de Sobral, na pessoa do Prof. Clodoveu Arruda, mais uma vez demonstra na administração do presente uma profunda visão relacional entre o passado e o futuro. Insiste na realização de uma pesquisa arqueológica em momento anterior a restauração do monumento. Esta é mais uma demonstração do espírito sobralense direcionado para a vanguarda dos acontecimentos.

Alias, a realização uma pesquisa arqueológica em momento anterior a execução da restauração é preconizada em diversas Cartas Patrimoniais, como a de Veneza, das quais o Brasil e signatário. Sobral, com esta, postura, adianta-se no campo da preservação patrimonial, permitindo aos restauradores um trabalho sério e embasado cientificamente. Aliado ao esforço e a determinação da Prefeitura de Sobral, contamos com o eficiente e imprescindível apoio dos técnicos da Superintendência Regional do IPHAN nas pessoas do Prof. Romeu Duarte, do Arquiteto Domingos Linheiro, e da Dra. Olga Paiva.

Para a realização desta pesquisa o Laboratório de Arqueologia da Universidade Federal de Pernambuco mobilizou o seguinte pessoal: Marcos Albuquerque – coordenador geral da pesquisa; Amanda Pereira – direção de corte; Anahi Maranhão – Unidade de Documentação Gráfica; e Doris Walmsley – Unidade de Documentação Fotográfica; além dos operários especializados Paulo Maciel e Ricardo Barreto.

Esperamos ter contribuído com os resultados desta pesquisa para um melhor entendimento da historia da sociedade sobralense, em seu quotidiano, e para a preservação de parte da memória nacional.

O ano de 1736 mudou os destinos de uma fazenda e gestou o nascimento de uma sociedade. Naquelas terras no vale do Acaraú onde antes havia a fazenda Caiçara, a Macaco e tantas outras, iniciava-se uma povoação.

Aquelas fazendas inicialmente dedicavam-se à criação de gado que era comercializado "em pé", com grandes prejuízos para os criadores. Mas logo cedo, no vale do Acaraú, foi desenvolvida uma técnica de conservação para a carne: inicialmente sob a forma de carne seca, a 'carne de sol', e posteriormente a 'carne de charque'. Com as carnes salgadas e secas ganhava-se mais, pois não havia a perda em peso do rebanho, exausto pelas enormes travessias no sertão.

Dentre aqueles fazendeiros, uma significativa parcela era oriunda dos estados vizinhos. Haviam chegado fugindo das atrocidades da guerra contra os holandeses. Não apenas atrocidades do ponto de vista físico, mas ainda das conseqüências negativas decorrentes de um período de dificuldades financeiras. A guerra holandesa exauriu as economias de fazendeiros e senhores de engenho, principalmente os da Capitania de Pernambuco.

A Povoação da Caiçara Ribeira do Acaraú

Muitas das primeiras fazendas implantadas no Vale do Acaraú mantêm-se ainda hoje como fazendas. Desmembradas, re-membradas, transferidas de famílias, mas continuando sempre como tradicionais fazendas. O mesmo não ocorreu com a fazenda Caiçara, implantada pelo Capitão Antônio Rodrigues. A decisão do Visitador Felix Machado Freire mudaria os destinos daquela localidade.

Várias igrejas já haviam sido construídas na região, entretanto, a fazenda Caiçara ainda não construíra sua capela. O Visitador poderia ter escolhido qualquer das igrejas já existentes para sede do Curato, mas, ao contrario, resolveu que seria nas terras da Fazenda Caiçara que se deveria erguer uma igreja matriz para a região. Alegava como argumento de sua escolha, a favorável posição geográfica desta fazenda, para onde convergiam muitas das boiadas que atravessavam o Acaraú; um ponto aproximadamente central em relação às demais fazendas da região.

E foi exatamente em torno desta Igreja, que teve sua construção iniciada em 1746, sob a invocação de Nossa Senhora da Conceição, que se desenvolveu um povoado, a Povoação da Caiçara da Ribeira do Acaraú, que viria a se transformar em Sobral.

Evidentemente que não foi apenas o fato de ter sido sede do Curato, que permitiu a Sobral, o crescimento, o desenvolvimento que experimentou.

Mas foi a partir de 1746 que aumentou o número das casas de moradores e de negócios em torno da Igreja recém construída. A sua orientação balizou o surgimento das ruas em torno da praça da Matriz. Começava a nascer Sobral.

O Capitão Mor José de Xerez Furna Uchoa

Um dos mais antigos moradores do povoado que nascia às margens do Acaraú, foi José de Xerez da Furna Uchoa. Em 23 de maio de 1757, quando o Capitão Antônio Rodrigues, fez a doação do patrimônio da Igreja de Nossa Senhora da Conceição, José de Xerez Furna Uchoa, então Sargento-Mor, assinara como testemunha do termo de doação. O cargo de Sargento-Mor representava uma grande honraria e também enormes responsabilidades em termos do sistema de defesa colonial: integrava o quadro dos oficiais das Ordenanças.

A provisão do posto era de competência do Governador-Geral, mediante a indicação feita pelos oficiais da Câmara, juntamente com o alcaide-mor e o capitão-mor da Comarca. Para ser indicado ao posto de Sargento-Mor, era necessário ser pessoa residente nos limites da vila, cidade ou conselho.

O Capitão José de Xerez Furna Uchoa, juntamente com outros habitantes da Caiçara da Ribeira do Acaraú além das atividades agropecuárias dedicava-se também ao comercio de fazendas e de secos e molhados. A sua função de Capitão Mor o fazia exercer também atividades relacionadas à formação de Companhias de Ordenanças, ao treinamento dos homens com arma, e inspeção nos seus distritos, sob a inspeção do governador.

A Serra da Meruoca, que emoldura a cidade de Sobral, constitui-se em um micro-clima de altitude apresentando significativas características que a diferencia, do ponto de vista edafo-climático, da vizinha cidade de Sobral. Esta Serra atraiu alguns moradores de Sobral dentre os quais se encontrava o Capitão Mor José de Xerez da Furna Uchoa. Este homem apresentava algumas características de personalidade que marcaram sua presença nesta região. Possuía um espírito não apenas empreendedor mas sobretudo pioneiro. Era proprietário na Serra da Meruoca de um sítio denominado Santa Ursula, no qual experimentou o plantio de café, trazido de Paris, sendo esta a primeira plantação de café não apenas da região mais de todo o estado do Ceará.

O ano de 1778, no entanto, não foi muito agradável para o Capitão Mor José de Xerez da Furna Uchoa, pois, a Câmara de Sobral determinou que as terras da Meruoca seriam patrimônio dela, portanto, os que lá possuíam terras passariam a ser foreiros; passando a pagar foro à Câmara, pelo uso e ocupação de suas terras. Este provimento não foi bem aceito pelos que já tinham se estabelecido naquela Serra. Já havia muitas benfeitorias como casas, plantações e até engenhos de rapadura. O Capitão Mor Xerez Uchoa não achou a decisão nem justa nem tampouco legal. Argumentou por escrito ao Ouvidor Manoel Pinto Avellar de Barbedo que não atendeu à sua solicitação. A partir deste momento o Capitão Mor José de Xerez da Furna Uchoa decidiu, juntamente com outros ocupantes da Meruoca, oporem-se à decisão, pois julgavam que se conflitava com as ordens e decisões régias. O governo sentindo a possibilidade de descumprimento de suas ordens ameaçou os rebeldes de prisão. A despeito da ameaça de prisão o grupo da Meruoca resistiu em não pagar o foro cobrado pela Câmara. O governador então ordenou a prisão de todo o grupo. D. José Tupinambá, tendo acesso as notas da família do Capitão Mor, transcreve em seu livro algumas anotações que bem revelam as firmes posições do Capitão Xerez: "de não cumprir as ordens do Governo por entenderem ser absurdas as pretensões de destruir concessões feitas por S.M. a Rainha e revogar decisões por ela tomadas; que eles não eram homens a sujeitarem-se a ordens absurdas, que mesmo pela posição que ocupavam, posição devida unicamente a benevolência de S.M., devia ser ele Governador o primeiro a dar exemplo e pronto cumprimento das ordens régias...". Logo após a ordem de prisão, com exceção do Capitão Mor José de Xerez Furna Uchoa, todos fugiram para não serem presos e em seguida retrataram-se. Neste ínterim, amigos de Xerez aconselharam-no a também fugir pois fatalmente ele seria condenado a penas severas. Dentre os que o aconselharam estava o próprio Tenente Coronel que deveria efetuar a sua prisão. De modo altaneiro o Capitão Mor José de Xerez Furna Uchoa respondeu "... não posso, não devo e nem quero fugir porque minha dignidade m'o impede; cumpra as ordens que tem, sejam quais forem as conseqüências". Retirou-se o oficial e no dia seguinte realizou a prisão sendo o Capitão Mor conduzido para Fortaleza e apresentado ao Governador.

O Governador ainda tentou convencer o Capitão Mor a rasgar suas denuncias e a declarar que desaprovava "tudo o que fez em Sobral", pois se assim o fizesse tudo estaria acabado. Indignado com a proposta do Governador, Xerez lhe responde com energia: "O Senhor Governador está enganado: O Capitão Mor José de Xerez da Furna Uchoa não engole jamais aquilo que lança". Não conseguindo dobrar o "rebelde" de Sobral, o Governador o enviou para Pernambuco para em seguida ser julgado na Bahia. José de Xerez Furna Uchoa recebeu uma pena de sete anos de prisão a ser cumprida na África.

Após dois anos de prisão seus amigos e parentes conseguiram ao custo de 15.000 cruzados a comutação de sua pena de prisão e degredo.

Assim, como já havia cumprido dois anos de prisão, permaneceu impedido de retornar a Capitania do Ceará por mais cinco anos, tempo em que se completariam os sete anos do total da pena que lhe fora imposta.Passado o período de impedimento o Capitão-Mor José de Xerez Furna Uchoa retornou ao Ceará.

Retorno que poderia ter alterado o quadro político local pois, Xerez retornou com poderes conferidos pelo Vice-Rei do Brasil para prender seus inimigos, o que não o fez por complacência. Arrependeu-se, pois no ano de 1789 voltou a ser perseguido tendo que passar três anos em Pernambuco para evitar problemas de maior monta.

O valor pago por seus parentes e amigos para conseguirem a comutação da pena foi restituído a todos, de forma que Xerez ficou praticamente em uma situação financeira difícil.

A Casa do Capitão Mor

As construções desta época em Sobral eram bastante simples, haja vista que a sua primeira Igreja estava em ruínas apenas 14 anos após a sua construção. Haviam muitas casas construídas em taipa, algumas, apenas com sua fachada em alvenaria de tijolos manuais. Havia ainda no centro da vila, que se iniciava, alguns currais destinados a conter as boiadas.

As escavações arqueológicas realizadas na casa que pertenceu ao Capitão Mor José de Xerez da Furna Uchoa revelaram alguns aspectos, tanto da vida quotidiana dos que habitaram esta residência, como da edificação propriamente dita. Foram identificadas marcas de estaca que provavelmente foram utilizadas na construção de um curral, no inicio de Sobral, como também outras marcas de estacas relacionadas com as paredes de taipa da casa do Capitão Mor.

Ao longo dos anos esta habitação foi sucessivamente transformada, do ponto de vista arquitetônico, atingindo a feição atual. Paredes foram modificadas, pisos foram alterados, a quota de nível do quintal foi consideravelmente aumentada. Uma fossa, um sanitário e um banheiro foram completamente soterrados.

Este sítio possui as coordenadas de 3o 41' 28.2" de Latitude Sul e 40o 20' 55,1" de Longitude Oeste e recebeu o número de registro CE-007 pelo Laboratório de Arqueologia da Universidade Federal de Pernambuco. Todo o material documental como plantas, perfis, fotografias e relatório encontram-se arquivados neste Laboratório com cópias para os seguintes órgãos: Secretaria de Cultura da Prefeitura Municipal de Sobral, 4a SR do IPHAN, em Fortaleza, e IPHAN – Brasília. Todo o material arqueológico encontrado nesta escavação encontra-se depositado na Secretaria de Cultura da Prefeitura de Sobral.

A Prefeitura de Sobral juntamente com a Superintendência Regional do IPHAN deverá restaurar este imóvel com base nas informações obtidas nesta pesquisa arqueológica e transforma-la em um Centro de Referencia para a História de Sobral.

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