Arqueologia de Mazagão Velho

Archeology of Old Mazagão

Sonho luso-marroquino

Durante o século XVI Portugal já fincara raízes em diferentes terras de além mar. Pontos de comércio, colônias, foram sendo implantados na América, em terras d'África e até mesmo no Oriente.

As investidas portuguesas contra os mouros levaram à ocupação de diferentes cidades da área meridional de Marrocos, à implantação de Mazagão, erguida na parte sul da baía, bem junto ao mar.Aos poucos, no entanto, os mouros começavam a recuperar suas cidades.

Em março de 1541, Santa Cruz de Cabo de Gué caiu em poder dos mouros. A perda deste baluarte compeliu o rei D. João III a determinar já em outubro daquele ano, o abandono e a evacuação de Safim e Azamor.

Alguns anos mais tarde, em 1550, Alcácer-Ceguer e Arzila foram abandonadas pelos portugueses, restando a Portugal, de suas conquistas em Marrocos apenas Ceuta, Tânger e Mazagão. Posteriormente, em 1662 Tânger, que permanecera portuguesa, foi cedida à Inglaterra como parte do dote de casamento de D. Catarina com Carlos II. Assim, no final do século XVII até meados do XVIII apenas Mazagão permaneceu como marco de resistência do sonho lusitano em Marrocos.

Mazagão nascera uma cidade litorânea, voltada para o comércio. Sua vocação de concentrar riquezas contribuía para aumentar a cobiça de outros povos, com riscos de invasão a que era submetida. Riscos aos quais se somavam os objetivos mouros de recuperar seu território. Ainda por determinação de D. João III, a cidade Mazagão fora fortificada, transformada em uma cidadela da qual se dizia inexpugnável. E de fato, esta cidadela resistiu por mais de dois séculos, ainda que isolada por terra pelos contingentes marroquinos.

A partir de 1750 intensificaram-se os ataques mouros à praça portuguesa de Mazagão. A partir de então se sucederam os cercos, os ataques sofridos por Mazagão: em 1751, 1752, 1753, 1754, 1756, 1760, e 1763. Neste último, a cidade se viu na iminência de ser tomada. Mas foi em 1769 que um poderoso contingente de 8.000 homens montou o último cerco à cidade. O transtorno, o perigo real, imposto pelos mouros que sitiavam a vila portuguesa de Mazagão, levou o Rei D. José I a ordenar o abandono da praça e o embarque imediato da população para Lisboa.

Em 1769 já haviam se passado 256 anos desde que os portugueses fundaram Mazagão. Muitas transformações haviam se operado nas relações entre os países, nas políticas internas, nos produtos das colônias. E, no reinado de D.José, a política portuguesa assumia novos rumos. Assim é que, ao tomar conhecimento do cerco que se montava a Mazagão, o Rei decidiu pela transferência para o Brasil das 340 ali residentes.

Nasce uma Nova Mazagão

Mas não era Lisboa o destino final daquela população: as preocupações da coroa portuguesa com a ocupação da Amazônia brasileira fizeram com que se integrasse a estratégia de evacuação de Mazagão em Marrocos, com a implantação de uma Nova Mazagão na Amazônia. A intensificação dos conflitos em Marrocos coincidiu com um período em que a política portuguesa buscava intensificar o povoamento das fronteiras de sua colônia americana. A exploração do ouro no Brasil exigia da coroa cuidados especiais com as vias de acesso às minas. Seja para garantir terras potencialmente ricas em ouro, seja para evitar a evasão, o contrabando do ouro, o controle de Amazonas preocupava Portugal. A região, o Rio e sobretudo sua foz era alvo constante das incursões inglesas, holandesas e francesas.

Apenas com o povoamento e a fortificação de pontos estratégicos poderiam vir a garantir a posse e o domínio do Amazonas. Assim é que, entre 1755 e 1759, durante o governo de Francisco Xavier de Mendonça Furtado (governador do Grão Pará entre 1751 e 1758) foram fundadas cerca de 60 vilas e povoados no Estado do Grão-Pará, nas capitanias do Pará e Rio Negro. Mas nos meados do século XVIII, parece que já não se mostrava muito fácil arregimentar colonos voluntários para a América. Os dois problemas confluíram para a solução: transplantar para a América a colônia de Marrocos.

"Com estas famílias ordena El Rei Nosso Senhor, que se estabeleça uma nova Povoação na Costa septentrional das Amazonas, para se darem as mãos com o Macapá, e com Vila Vistoza.".

A questão estratégica de defesa dos canais de acesso ao Amazonas, é evidente. A vila de São José de Macapá, com a sua Fortaleza de São José, representava o foco da questão de defesa do canal Norte do Rio. A guarnição de Macapá poderia vir a necessitar de reforços em caso de assédio; nestas circunstâncias as vilas próximas responderiam em seu auxílio. Assim a Vila de Mazagão viria a integrar o sistema de apoio à Fortaleza de São José, juntando-se às vilas de Macapá e Vila Vistoza da Madre de Deus, fundada em 1767 às margens do rio Anauerapucu.

O local da nova vila fora sugerido por Francisco Xavier de Mendonça Furtado, em carta que enviada a Ataíde Teive. De há muito, Teíve planejava instalar uma povoação nas margens do Mutuacá. De início planejara ali assentar uma fazenda, uma povoação com índios, "posto que tinha ótimos campos para currais", como se refere em sua carta a João Ignácio de Brityo e Abreu, Juiz de Fora do Pará, datada de 1758. Ainda com base nas recomendações de Mendonça Furtado, o Governador, incumbir o ajudante engenheiro Domingos Sambucetti de examinar 'o sítio mais cômodo para o estabelecimento da villa'. Assim Sambucetti depois de estudos recomenda ao Governador um "terreno místico ao lugar de Santa Ana do Rio Mutuacá", como assinala na planta que fez. No local escolhido existia um povoado do qual fez a planta, desenhando a nova vila sobre o povoado já existente. Este povoado ali se instalara desde 1769. Fora constituído por um contingente indígena, irregularmente 'descido' por Francisco Portilho, em 1753.

Impedido pelo Governador Teíve, de negociar os índios aprisionados, o 'capitão' cedeu à pressão e concordou em constituir um povoado com aquela gente. As margens do Mutuacá foi o terceiro ponto buscado para o assentamento. Antes haviam ocupado uma área na Ilha de Santana (1754) e posteriormente nas margens do Rio Anauerapucu (1756). As primeiras áreas foram consideradas pouco salubres e em 1769 a população se transferiu para as margens do Rio Mutuacá.

O projeto para a fundação de Vila Nova de Mazagão foi "desenhado sobre o povoado já existente", e previa a construção de mais de 500 casas. Da povoação indígena, apenas a igreja foi considerada no plano de Sambucetti. As pequenas quadras do povoado não foram integradas ao projeto, bem mais ambicioso, da Nova Mazagão.

Em 1770 chegaram a Belém as primeiras 340 famílias que deixaram a velha Mazagão, no Marrocos. Deveriam se demorar pouco tempo em Belém. Parte destas famílias iria constituir a Nova Mazagão, um povoado que a coroa portuguesa mandara o Governador do Grão Pará, Governador Ataíde Teíve, construir às margens do rio Mutuacá. Uma vila planejada, composta de muitas quadras que se distribuíam nas terras firmes às margens do rio que a partir de então recebeu o nome da vila, Rio Mazagão.

Também em 1770, (23 de janeiro) as obras da vila já haviam sido iniciadas. Mas, na realidade, os trabalhos não correram tão céleres quanto seria da conveniência da Coroa. Todos os serviços preliminares de desmatamento, limpeza e preparação do terreno certamente consumiram um bom tempo. Havia ainda a questão de aquisição e transporte de material. Embora grande parte do material utilizado pudesse ser obtido nos arredores, como a palha do buçu, para cobrir as casas, ou o barro para a taipa, possivelmente as pedras para a construção da matriz e talvez de algumas das casas, e sobretudo a cal, teriam que vir de longe.

No início de 1773, as primeiras 56 casas já estavam concluídas; outras 36 já construídas, faltavam ser caiadas; 25 casas também já levantadas, careciam ainda de reboco e caiação; outras 17 haviam sido principiadas.

No final de 1773, 176 famílias, já haviam sido transferidas para a nova vila que se fundara, especialmente para recebê-los: a Nova Mazagão, como ficou conhecida até 1880. Naquele ano, entre 4 de agosto e 4 de setembro, o governador João Pereira Caldas realizou uma visita às vilas de Macapá, Vila Vistoza da Madre de Deus e Nova Mazagão.

Nova Mazagão prosperou, tornando-se uma das grandes produtoras da região. Seus produtos, comerciados e transportados através do rio, iam abastecer Belém. Mas as epidemias que no século XIX assolaram várias vilas e povoados no Brasil, não pouparam Nova Mazagão. Em 1781 dezenas de pessoas morreram, vítimas de uma epidemia de cólera. Desgostosos com a situação, e provavelmente atribuindo as moléstias aos 'maus ares', a maior parte da população migrou.

Embora a epidemia tivesse sido controlada a partir de meados de 1882 muitos dos sobreviventes, traumatizados com as mortes, transferiram-se definitivamente para outros locais. No decorrer dos anos, poucos moradores permaneceram no local.

O foro de vila daquela que fora a Nova Mazagão desaparecera com a maior parte da população; a antiga vila praticamente desapareceu. Uns poucos moradores permaneceram, conta-se que na maioria negros. Posteriormente, com a constituição do município de Mazagão implantou-se sua sede, uma nova cidade, a cerca de 20 km de distância da antiga vila. Tão distante no tempo se estava de Mazagão de Marrocos, que a vila formada no século XVIII passou a ser referida como Mazagão Velho.

Vocação para o ressurgimento

Hoje Mazagão Velho guarda memórias escondidas de seu antigo apogeu. As memórias transmitidas através das gerações, remontam aos tempos de Marrocos, e são revividas através de folguedos populares, de festas religiosas e profanas. O quanto resta do traçado da antiga Nova Mazagão, não se sabe ao certo. Mas certamente existirão vestígios daqueles tempos que poderão ser resgatados arqueologicamente.

Quanto à migração da maioria de sua população, o abandono das casas, a perda de seu status, teria alterado aquele traçado? Como a população remanescente teria redimensionado o espaço? Como eram as construções das casas e das obras públicas de então? Estas são algumas das perguntas que freqüentemente se fazem, cujas respostas permitiram uma visão do que seriam as vilas planejadas para o Brasil.

O que hoje se sabe da vida da Nova Mazagão, longe está de refletir de fato o que foi a vida, o que foram as lutas para a adaptação de uma população transferida para uma realidade tão distinta daquela a qual se acostumara na África. O que se sabe representa apenas as linhas gerais dos eventos desta história. É necessário buscar em todas as fontes, desde os documentos históricos oficiais, aos documentos eclesiásticos, aos documentos arqueológicos, e até mesmo a história oral. Embora afastados no tempo por diversas gerações, as memórias guardadas através das tradições podem representar pelo menos pistas a serem seguidas nas pesquisas.

A equipe do Laboratório de Arqueologia da Universidade Federal de Pernambuco está no momento realizando pesquisas na área atendendo a solicitação do Governo do Estado do Amapá, como ainda do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Os trabalhos ainda não estão conclusos, mas sim, apenas iniciados. Esperamos que em próximas campanhas possamos resgatar mais unidades funcionais desta cidade e contribuir para o seu melhor entendimento.