Arqueologia da Sinagoga Kahal Zur Israel

Archaeology of Kahal Zur Israel Synagogue

No inicio do século XVII tinha continuidade o processo de expansão do Sistema Colonial Europeu. As Américas ainda eram um grande objetivo a ser alcançado pelos europeus. Embora o processo econômico estivesse nesta época na Europa em plena efervescência, o relacionamento político entre os diversos reinos estava abalado, sobretudo em decorrência de problemas de ordem religiosa.

Dentre as principais vítimas da perseguição religiosa encontravam-se os judeus. Estes, aliás, já detinham em seu inconsciente coletivo uma longa tradição de perseguições e conseqüentemente de artifícios de sobrevivência.

Os paises católicos, sobretudo Portugal e Espanha, não pouparam esforços no sentido de garantir a hegemonia cristã. Ocorre, entretanto, que grande parte dos portugueses da época eram de origem judaica. Teve, por conseguinte, continuidade ao processo de perseguição aos judeus com o confisco de seus bens e capital. Uma significativa parcela de portugueses de origem judaica migrou para a Holanda em um momento histórico no qual este reino se consolidava e expandia-se para o Novo Mundo.

Com a chegada holandesa em terras da Capitania de Pernambuco, em 1630, chegaram também muitos judeus, tanto os de origem portuguesa como os de origem holandesa. A situação na colônia nesta época era bastante conflituosa. Conflito de natureza política, militar, econômica e religiosa. A perda gradual das posições luso-brasileiras não significava tranqüilidade para os holandeses e muito menos para os judeus que os acompanhava. Havia um predomínio da pratica religiosa católica por parte dos lusitanos que abominavam qualquer manifestação religiosa de natureza judaica.

A experiência histórica dos judeus, no trato com perseguições, permitiu que os mesmos encontrassem saídas para suas dificuldades de culto. Este inclusive é um aspecto já abordado por alguns autores, mas que exige uma analise mais aprofundada para que haja um melhor entendimento deste período ainda enevoado pelas brumas do preconceito.

O dia 23 de janeiro de 1637 viria a mudar significativamente este quadro político/religioso na colônia. Desembarcaria neste dia na Capitania de Pernambuco o Príncipe João Mauricio de Nassau. O comando dos negócios da Companhia das Índias Ocidentais em Pernambuco estaria sob o seu controle. A figura humana deste governante transcendia o comum. Cientistas, artistas, cartógrafos, faziam parte de sua comitiva. A sua visão larga de mundo o posicionava como um homem que se situava muito além de sua época. Procurou implantar na colônia uma nova política administrativa radicalmente contraria as políticas vivenciadas até então. Procurou coligações que fossem favoráveis a sua administração, procurou preservar o meio ambiente sem detrimento do crescimento harmônico das cidades. Cultivou uma convivência social na qual predominava o respeito aos diferentes credos. É precisamente a partir desde momento que os judeus residentes na Capitania de Pernambuco, juntamente com outros que para cá migraram, tiveram a oportunidade de "existir" com identidade pública. Entretanto, mesmo com a liberdade de culto assegurada pela autoridade governante, muitas reações se fizeram presentes pelos portugueses de origem cristã.

O crescimento dos judeus na Capitania de Pernambuco preocupava os cristãos portugueses que através de um documento da Câmara de Olinda, datado de 1637, solicita ao governo holandês a suspensão da vinda de judeus para a Capitania. Os termos deste documento bem demonstram a animosidade que havia entre os praticantes destes dois credos religiosos. Os judeus são tidos como inimigos de Cristo e conseqüentemente indignos de ter a amizade dos católicos, como ainda, neste mesmo documento é dito, que os judeus são odiados por outras nações.

A despeito desta constante querela religiosa, os judeus ocuparam um significativo espaço durante o governo do Conde João Mauricio de Nassau. A participação dos judeus podia ser notada em praticamente todos os segmentos da sociedade. No setor publico, apenas três anos após a chegada de Nassau, era construída uma ponte pelo judeu Balthazar da Fonseca. Construção de significativa importância para a economia da região, pois ligava o Recife a Maurícia. O setor comercial também se beneficiou bastante com a iniciativa e o capital dos judeus que se encontravam na Capitania.

A postura holística de Nassau permitiu aos judeus a construção da primeira Sinagoga das Américas. Enfim, os judeus que habitavam o Novo Mundo puderam construir a sua Sinagoga que viria a chamar-se Kahal Zur Israel. Esta Sinagoga funcionou normalmente propiciando aos judeus a sua pratica religiosa. Entretanto, com a saída de Nassau e com a capitulação dos holandeses, em 26 de janeiro de 1654, a situação dos judeus viria a se complicar novamente. Embora nos termos da capitulação ficasse consignado que haveria uma anistia para os holandeses e judeus que quisessem permanecer, muitos se retiraram e migraram para outras localidades. Foram, inclusive, os judeus que saíram do Recife que fundaram a cidade de New York na América do Norte.

O prédio no qual havia funcionado a Sinagoga Kahal Zur Israel passou por diferentes utilizações inclusive ficou durante algum tempo sob o controle dos padres Oratorianos. Em período mais recente funcionava uma loja de material elétrico.

A Federação Israelita de Pernambuco já de algum tempo se preocupava com a localização do prédio no qual teria funcionado a referida Sinagoga.Um trabalho intenso de historiadores e arquitetos, estudando documentos da época, inclusive a cartografia do Recife, identificou um imóvel no qual deveria ter funcionado a Sinagoga Kahal Zur Israel, entretanto não se dispunha de uma comprovação material da existência da mesma.

No ano de 1999 a Federação Israelita de Pernambuco solicitou à coordenação do Laboratório de Arqueologia da Universidade Federal de Pernambuco a elaboração de um projeto de pesquisa que tivesse como objetivo o estudo arqueológico do local onde deveria ter existido a Sinagoga Kahal Zur Israel, localizada em planta.

Após a elaboração do projeto o mesmo foi encaminhado a Fundação Filantrópica Safra que se sensibilizou com os seus objetivos e financiou a execução das pesquisas.

O prédio situado na atual rua do Bom Jesus, antiga rua dos Judeus, apresentava algumas paredes revestidas com lambris deteriorados, algumas placas de concreto sendo utilizadas como piso e sobretudo muito lixo fruto de seu abandono. Após a preparação para o inicio das escavações arqueológicas, que, diga-se de passagem, despertava alguma curiosidade e pouca expectativa, fato confessado posteriormente por alguns técnicos e muitos membros da comunidade judaica em Pernambuco, teve inicio a marcação dos setores a serem escavados. Foram realizadas simultaneamente escavações tanto nas paredes como na área do piso. Quando foi retirado o ultimo piso utilizado no imóvel, o do século XX, foi encontrado um outro piso em tijoleira, abaixo do qual foi encontrado um outro também em tijolos. Simultaneamente a este trabalho as escavações nas paredes começaram a revelar diferentes materiais de construção como também espaços que tiveram outra função em períodos anteriores. A pouca expectativa, demonstrada no inicio dos trabalhos, transformou-se gradativamente, com o desenrolar das escavações, em um grande foco de atenções. Foi aguçada a curiosidade não apenas de técnicos, como também de populares, turistas, escolares, e da comunidade judaica. Os trabalhos de pesquisa arqueológica atraíram uma visitação de 500 pessoas dia, tendo sido visitado por aproximadamente 10.000 pessoas.

Na parte próxima a porta de entrada do prédio, foi encontrado o talude do rio Beberibe. Esta descoberta permitiu uma comprovação material da largura do istmo que se constituía no espaço disponível à época para o Recife de então. Tratava-se de uma estreita faixa de areia, com aproximadamente 80 metros de largura, limitada a Este pelo mar e a Oeste pelo rio Beberibe. Neste istmo, que se ligava a Olinda, havia apenas algumas poucas casas, sobretudo armazéns relacionados com a situação portuária do local.

Abaixo do terceiro piso encontrado pode-se observar a presença de várias linhas de alicerces, paralelos ao rio, que demonstram os aterros sucessivos da área durante o período de ocupação holandesa e conseqüentemente com a participação de judeus. O Recife alargava-se, era conquistado gradativamente das águas. Nesta primeira sucessão de aterros que viria a ser denominada de "rua dos judeus" seria construída a Sinagoga Kahal Zur Israel. Sete níveis de diferentes pisos foram encontrados nas escavações arqueológicas, sendo que o ultimo, de origem holandesa, foi utilizado pelos judeus em sua Sinagoga.

O limite posterior do primitivo prédio também foi identificado. Sabe-se hoje exatamente onde teria sido o final da Sinagoga e o acréscimo que foi incorporado ao prédio pelos padres que ocuparam o imóvel após a saída dos holandeses. Na época de funcionamento da Sinagoga o seu limite posterior coincidia com um muro que cercava a cidade e que também foi identificado durante as escavações.

A escavação das paredes e a retirada de 1200 m2 de reboco revelaram muitas modificações sofridas pelo imóvel durante os séculos subseqüentes. Inclinação de escadas foram identificadas além de quotas de teto. Nas escavações do piso foi constatada a origem do material utilizado como aterro. A areia transportada da zona portuária e das imediações de algumas residências traziam incorporada uma significativa quantidade de material arqueológico que se não está diretamente associado ao judeu de uma forma geral encontra-se associado aos elementos materiais da sociedade na qual os mesmos se encontravam inseridos. Milhares de fragmentos de louça importada, tanto de qualidade popular quanto de nível mais sofisticado testemunham a estratificação social da época na cidade do Recife. Hábitos, como a pratica de fumar cachimbo também foram identificados no interior da Sinagoga. Milhares de fragmentos de cachimbo de argila branca, importados, sobretudo da Holanda e da Inglaterra, vieram incorporados ao material utilizado no aterro do istmo.

Embora a relação espaço-cronológica de todo o material arqueológico constitua-se em um acervo de significativa importância para o entendimento da sociedade estudada, a descoberta de maior significância, do ponto de vista comprobatório, foi a descoberta da estrutura do Miqvê. No prédio em que funcionou a Sinagoga Kahal Zur Israel havia três cômodos que foram localizados arqueologicamente. No cômodo do meio foi encontrado um poço entulhado que após a sua abertura teve-se acesso ao lençol freático que apresenta uma água límpida e fluente. Ao lado deste poço foi encontrada uma depressão, bem marcada na estratigrafia e entulhada com restos de construção. É provável que com a saída dos judeus os padres que assumiram o imóvel tivessem destruído a piscina como forma de "apagar" os vestígios religiosos judaicos.

A destruição, entretanto, deixou marcas indeléveis nas camadas que permitiram a associação funcional deste espaço. Embora do ponto de vista cientifico não houvesse nenhuma dúvida quanto a estrutura, foi convocado um Tribunal Rabínico para avaliar in locu esta descoberta. Publicamente o referido Tribunal declarou não ter a menor duvida que a descoberta tratava-se de um Mikvê.

Com base nas informações fornecidas pela arqueologia teve inicio os trabalhos de restauração do imóvel. Os trabalhos de analise de laboratório do material arqueológico tem prosseguimento e em breve os resultados desta pesquisa arqueológica serão apresentados em livro.

Toda a equipe de arqueologia sente-se honrada em ter participado desta pesquisa e de ter dado a sua parcela de contribuição para o maior entendimento da participação dos judeus na formação da nação brasileira.

Hoje, a localização da Sinagoga Kahal Zur Israel, a primeira Sinagoga das Américas, não é mais uma conjectura, mas sim uma realidade concreta, testemunhando a historia de um povo, e parte do quotidiano de uma cidade.

Sinagoga Kahal Zur Israel
Forte Orange, Sinagoga Kahal Zur Israel e Recife Antigo